O título deste artigo representa bem a meu pensamento quando li na imprensa que o arquivo completo do Diário de Notícias, que congrega tudo quanto foi publicado entre 1864 e 2003 – fotografias, ilustrações e todo o tipo de documentos -, foi considerado Tesouro Nacional pelo Conselho de Ministros. Menor sorte teve o arquivo do jornal Independente, cujo arquivo fotográfico foi doado, este ano, ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo, não restando mais memória viva da vida deste jornal.
É lamentável o abandono, a falta de responsabilidade e o laxismo da sociedade civil em geral relativamente a este importante espólio jornalístico.
Quer o DN, quer o próprio Independente marcaram uma época importante da história recente de Portugal e julgo que falo por todos os profissionais das ciências da informação quando digo que fico preocupado com as notícias que vieram a público.
Um país sem memória é um país sem futuro. Não podemos saber, enquanto povo, o que fomos e para onde queremos ir se deixamos de ter acesso às fontes de informação primárias, nomeadamente a estes testemunhos vivos da história recente do século XX. Não temos, sequer, o direito de privar as gerações futuras do acesso a uma informação e conhecimento fundamentais para poder perceber como era o Portugal do final do século XX.
A tentativa de salvamento do espólio documental do Independente é de louvar, no entanto, não foi possível salvar todo o acerto, nem se conseguiu, acima de tudo, avaliar para podermos, com base científica, decidir, de acordo com a lei, o interesse histórico e cientifico, o que seria de preservar e o que, de facto não teria qualquer tipo de valor.
Guardar, de forma fragmentada, partes deste importante espólio documental é truncar muita da verdade e dificultar, eventualmente até de forma irreversível, qualquer interpretação que pudesse ser feita sobre a mesma num futuro próximo, quer seja em termos de investigação, que em termos de história – até da própria imprensa e também da história económica e social do nosso país.
Isto faz-nos, de certa forma, recordar o “Sermão de Santo António aos Peixes”, do padre António Vieira, importante filósofo, escritor e orador português da Companhia de Jesus e uma das personalidades mais influentes do século XVII. Este sermão não é mais do que uma alegoria à alma humana, aos nossos vícios e às nossas virtudes e, sobretudo, representava a defesa da humanidade nas relações entre os homens. E é disto que estamos a falar, dos nossos vícios, das nossas virtudes e da nossa alma enquanto povo que, parece-me, está a ser vandalizada e destruída.
Precisaríamos de ter uma pessoa com a importância e a imponência do padre António Vieira para nos voltar a dizer que as coisas não podem ser feitas assim. É necessário que se criem condições para tratar esta memória coletiva com todo o respeito e dignidade que merece.
Esta questão ganha ainda maior importância tendo em conta que estamos numa época em que a transformação digital é palavra de ordem. Com os meios e a tecnologia de que dispomos atualmente, parece-me que seria fácil garantir a digitalização destes acervos e, como tal, disponibilizá-los, com qualidade, em ferramentas apropriadas à sociedade civil.
Contudo, palavras há muitas, atos há muito poucos. É possível digitalizar estes acervos, as empresas de gestão documental fá-lo-iam com todo o prazer e orgulho, mas isto requer tempo e investimento. E um país que não investe na preservação da sua memória, tem muito mais dificuldades em delinear o futuro.
Fundador da EAD – Empresa de Arquivo de Documentação
(in https://www.dinheirovivo.pt/opiniao/um-pais-sem-memoria-e-um-pais-sem-futuro–15051413.html)