Tornou-se em poucos meses um dos grandes protagonistas da viagem rumo ao futuro sem emissões com efeito de estufa. É o hidrogénio verde, ou limpo, produzido com recurso a energias renováveis. Mas o percurso ainda só está a começar e não é isento de obstáculos. Portugal já entrou na corrida.
AAirbus anunciou nesta semana que está a desenvolver um novo avião comercial movido a hidrogénio limpo e que planeia tê-lo operacional em 2035. Esta é apenas a mais recente iniciativa na frente do hidrogénio verde, ou limpo, por parte de um dos grupos que lideram o setor da aviação e a inovação a nível mundial.
Nos últimos meses, depois de a Comissão Europeia ter definido o hidrogénio como uma das suas apostas no caminho para a descarbonização energética da União Europeia até 2050, no âmbito do Pacto Ecológico Europeu anunciado no final do ano passado, este gás incolor, na sua versão verde, emergiu em força como uma das opções energéticas limpas para as próximas décadas e um dos pilares para a descarbonização da economia. É também o impulso para um novo mercado na chamada economia sustentável.
Aberta a via pelo executivo de Ursula von der Leyen, Portugal decidiu criar a sua própria Estratégia Nacional para o Hidrogénio (EN-H2), que prevê uma série de iniciativas, e com a qual pretende posicionar-se para aceder aos respetivos fundos europeus, criar emprego e fazer o caminho da descarbonização. A futura instalação de uma unidade industrial para a produção de hidrogénio verde em Sines é a primeira aposta visível dessa estratégia, que deu nesta semana um novo passo, com a assinatura de um memorando entre Portugal e a Holanda para o seu arranque a breve prazo, previsivelmente no próximo ano. O que é afinal o hidrogénio verde, ou limpo? Que riscos tem e em que pé estão as tecnologias para a sua produção e comercialização? E porque é que nem todos concordam com a Estratégia Nacional para o Hidrogénio, que o Governo traçou para o país? Aí ficam as respostas.
Porquê o hidrogénio?
O hidrogénio é o elemento mais abundante do universo e com as tecnologias certas tem inúmeras possibilidades de utilização, nomeadamente como combustível ou como sistema de armazenamento energético, com a grande vantagem de a sua utilização, por exemplo em veículos de transporte ou unidades industriais, não emitir dióxido de carbono ou poluição atmosférica. Por isso, o hidrogénio é um dos pilares do Pacto Ecológico Europeu (Green Deal), uma iniciativa da Comissão Europeia lançada no final de 2019 pela sua presidente, Ursula von der Leyen, para os países da União Europeia chegarem à neutralidade carbónica em 2050. A aposta no hidrogénio no âmbito deste pacto europeu centra-se na produção e na utilização do chamado hidrogénio verde.
O que é o hidrogénio verde?
O hidrogénio verde, limpo ou renovável é o que tem o maior potencial de descarbonização, visto que é produzido através da eletrólise da água, num eletrolisador que é alimentado por eletricidade proveniente de fontes renováveis, como a eólica ou a solar. No processo da eletrólise, descoberto e utilizado há mais de cem anos, aplica-se uma corrente elétrica à água. Isso induz a separação entre as moléculas dos dois elementos que a constituem: hidrogénio e oxigénio, que são assim produzidos, juntamente com vapor de água.
O hidrogénio verde garante emissões zero?
Há várias formas de produzir hidrogénio. A que por enquanto é dominante, para aplicação em indústrias ou transportes, utiliza os combustíveis fósseis como matéria-prima, sobretudo gás natural, com um pesado saldo de emissões de gases de efeito estufa ao longo de todo o ciclo de produção. Na produção do hidrogénio por eletrólise em que é usada a eletricidade proveniente de combustíveis fósseis também há emissões de gases de efeito estufa, que são as correspondentes à eletricidade de origem fóssil consumida durante o processo.
O hidrogénio verde contorna esta última questão por utilizar em exclusivo eletricidade produzida por energias renováveis, e por isso as suas emissões são muito próximas de zero – as únicas aí são aquelas que foram produzidas na construção das infraestruturas industriais necessárias. É por isso que o hidrogénio verde é uma das apostas da estratégia europeia para a descarbonização para as próximas décadas.
O Pacto Ecológico Europeu prevê uma fase de transição, durante a qual os processos menos limpos de produção de hidrogénio terão de se adaptar a um funcionamento de baixo carbono, por exemplo através da captura e armazenamento de carbono. Com isso pretende-se reduzir as emissões a curto prazo e ajudar a desenvolver mais rapidamente o mercado do hidrogénio.
Na visão da Comissão Europeia, o hidrogénio pode assim contribuir para a mudança de paradigma, rumo a um sistema energético assente nas energias renováveis. Segundo esta estratégia, o hidrogénio permitirá não só compensar as flutuações de algumas fontes de energia renovável, mas também funcionar como solução para descarbonizar os setores industriais ainda muito dependentes dos combustíveis fósseis.
O hidrogénio tem riscos?
O hidrogénio é altamente inflamável, pelo que é necessário garantir a segurança em toda a cadeia da sua produção, armazenamento e transporte, existindo normas apertadas em vigor na Europa. Com o previsível alargamento da produção e do consumo do hidrogénio limpo, a Comissão salienta na sua estratégia que é essencial adotar normas estritas, bem como um sistema de monitorização e verificação, em todos os setores e em toda a cadeia, da produção ao consumo final.
Em que ponto está a tecnologia para a produção do hidrogénio verde?
A Comissão Europeia tem apoiado o desenvolvimento da inovação tecnológica nesta área. Segundo a própria executivo europeu, “a Europa é altamente competitiva no domínio da produção de tecnologias do hidrogénio limpo e está bem posicionada para beneficiar de um desenvolvimento do hidrogénio limpo como vetor de energia à escala mundial”.
Há, no entanto, processos, tecnologias e infraestruturas que têm ainda de ser desenvolvidos, otimizados e construídos para que o processo de produção do hidrogénio verde possa ser feito à escala industrial, e de forma competitiva.
Os equipamentos de grande escala necessários para o processo de eletrólise, por exemplo, não existem nesta altura ainda em quantidade suficiente e vai ser preciso criar também grandes, médios e pequenos reservatórios para o armazenamento de todo o hidrogénio que se prevê produzir na Europa nas próximas décadas.
A Comissão estima que os investimentos acumulados em hidrogénio renovável na Europa poderão atingir entre 180 e 470 mil milhões de euros até 2050, e entre três e 18 mil milhões de euros no hidrogénio hipocarbónico (com captura e armazenamento de carbono) produzido com recurso a combustíveis fósseis.
Como pode o hidrogénio ser usado nos transportes?
O hidrogénio pode ser utilizado em todo o tipo de veículos, desde os ligeiros aos autocarros, ou ainda nos transporte marítimos, nos comboios e na aviação.
O sistema usado é o das chamadas pilhas de combustível, um dispositivo que faz reagir o hidrogénio com a água, num processo inverso ao da eletrólise, que gera água e a eletricidade necessária à locomoção do veículo. Ou seja, os veículos são elétricos, mas em vez de baterias de lítio utilizam as pilhas de combustível.
Esta opção pode ser especialmente interessante para grandes veículos, como os autocarros, os grandes navios ou os aviões, e já há movimentações nesta frente. A Airbus, por exemplo, já está a desenvolver um avião comercial, que pretende ter operacional em 2035. E a CaetanoBus, sediada em Gaia, prepara-se, em parceria com a Toyota, para lançar o primeiro modelo de autocarro produzido na Europa.
Como se posiciona Portugal em relação ao hidrogénio?
O Governo definiu a Estratégia Nacional para o Hidrogénio, que esteve em consulta pública até 6 de julho e foi aprovada em Conselho de Ministros no dia 30 desse mês. A estratégia prevê um investimento de sete mil milhões de euros em projetos até 2030.
Um dos projetos centrais é o da produção industrial de hidrogénio verde em Sines, com recurso a energia solar, e em parceria com a Holanda, para onde será exportado o hidrogénio, através do porto de Roterdão. A data de arranque está agendada para 2021, e está previsto um investimento de pelo menos 2,85 mil milhões de euros, que pretende ao mesmo tempo “alavancar também a energia solar e eólica, enquanto fatores de competitividade”.
O memorando de entendimento nesse sentido, para “afirmar a intenção de ligar os planos de hidrogénio de Portugal e dos Países Baixos para 2030”, foi, aliás, assinado pelos dois Governos na última quarta-feira.
Ali se prevê “o desenvolvimento de uma cadeia de valor estratégica de exportação-importação, garantindo a produção e o transporte de hidrogénio verde de Portugal para os Países Baixos, através dos portos de Sines e de Roterdão”, de acordo com o Ministério do Ambiente e da Ação Climática.
A ideia deverá ser apresentada à Comissão Europeia como projeto de interesse comum europeu, que possibilita financiamentos europeus a projetos partilhados de Estados membros.
Na estratégia nacional está também envolvido o setor dos transportes, nomeadamente através da produção de combustíveis sintéticos, “em complemento com a eletricidade e os biocombustíveis avançados”, e com “apoio às infraestruturas de abastecimento a hidrogénio, preferencialmente com produção local associada”.
Está previsto ainda que o hidrogénio contribua para reduzir as emissões da produção industrial, além da implementação de um laboratório colaborativo para investigação e inovação nesta área.
A estratégia é uma peça fundamental nas opções do Governo para o futuro do país, com o objetivo de acelerar a descarbonização da economia, criar um novo segmento industrial e gerar mais emprego a breve prazo (e para as próximas décadas). Mas a escolha não escapa a críticas.
Quais são as críticas à Estratégia Nacional para o Hidrogénio?
São de vária ordem. Uma delas é desde logo económica e tem a ver com os custos da produção do hidrogénio verde, que são muito elevados. Neste momento, o hidrogénio renovável não é competitivo em comparação com o que resulta de combustíveis fósseis, custando cerca de cinco vezes mais a sua produção.
Essa é, aliás, uma das principais críticas da chamada Tertúlia Energia, um grupo fundado por vários especialistas, entre os quais se destaca o engenheiro e economista Mira Amaral, que foi ministro da Indústria e Energia de Cavaco Silva entre 1987 e 1995. O grupo considera que a tecnologia do hidrogénio renovável não está madura e ainda é demasiado cara, e defende que a aposta de Portugal nessa fileira industrial só deveria ser feita mais tarde. Fazê-lo agora, diz a Tertúlia Energia, “é desperdiçar recursos”, com “custos enormes para os consumidores”.
Já os ambientalistas da ZERO, não pondo em causa a estratégia em si, consideram que ela “tem muitos aspetos por clarificar”, que está “demasiado ligada ao gás natural”, uma vez que serão usadas as mesmas redes para transportar o hidrogénio, e que fica “aquém do desejável” para uma transição mais rápida para a neutralidade carbónica.
Além disso, a aposta na exportação de hidrogénio antes de se equacionar o seu uso nacional para eliminar a utilização de combustíveis fósseis, é uma escolha duvidosa no entender da ZERO.
Outra questão essencial tem a ver com a relação custo-eficiência do hidrogénio. “Queimar hidrogénio numa central térmica ou em equipamentos domésticos em casa é errado” e “não constitui solução de futuro” em termos “de eficiência”, diz a associação ambientalista.
Nesse sentido, defende a ZERO, o hidrogénio não é a melhor opção, quando comparada com o recurso a eletricidade 100% renovável diretamente injetada na rede, proveniente de fontes de elevada potência, ou produzida de forma descentralizada, quando for preciso assegurar, por exemplo, o abastecimento de energia elétrica em anos secos, que deverão ser mais frequentes no futuro.
A ZERO considera, aliás, que sendo um elemento fundamental na produção do hidrogénio limpo, e também um recurso limitado, a água acaba por ser “muito pouco discutida” na estratégia, e defende que essa questão tem de ser mais bem avaliada.
(IN Diário de Noticias)